3. ‘’Era um inferno trabalhar com ele… Eu ainda hoje digo isso… Porque o grau de exigência que ele punha na sua escrita, no seu trabalho… O grau de profissionalismo que ele próprio exigia a si próprio era de tal modo que estava permanentemente a emendar os textos, a corrigir, a acrescentar… E quando nós pensávamos que um livro estava concluído, estava em condições de ser impresso, ele aparecia nesse dia com mais um capítulo, que tinha sido alterado… Com, às vezes, com… uma alteração de uma palavra… Eu… conto… algumas vezes uma história que se passou entre nós… e que conto rapidamente, e simplificando algumas coisas… Ele convidou-me para almoçar… Estava na sua casa da Caparica… E eu atravessei o rio… Naquela altura, a ponte não tinha estas filas, atravessava-se rapidamente… e fui almoçar com ele… E quando cheguei, ele estava rodeado de folhas de papel amarrotadas no chão… E tinha sobre a sua mesa de trabalho uma resma de papel… na qual, na primeira folha, tinha escrito uma única frase… na sua letra pequenina… a tinta preta… Recordo-me perfeitamente disso… E… voltando-se para mim, disse-me… Estive aqui a trabalhar toda a manhã… E… portanto, dessa manhã inteira de trabalho tinha resultado aquele estendal de folhas de papel amarrotadas no chão e uma única frase.’’
1. ‘’O largo. Visto da janela onde me encontro, é um terreiro nu, todo valas e pó. Grande demais para a aldeia. É facto. Grande demais. E inútil, dir-se-á.’’ Mas… tenho a impressão que… nós não sabemos nunca, eu penso que qualquer pessoa que escreve… sabe que três ou quatro coisas mudaram, concretamente… sabe… por exemplo, eu, quando… o meu livro… o meu primeiro livro apareceu, foi uma reacção um pouco cultural… ao… ao francesismo, que dominava a literatura portuguesa… ao discurso indirecto, que dominava a literatura portuguesa… ao espírito rural, que dominava o estilo português… Uma grande parte da literatura portuguesa, mesmo quando é citadina, quando era citadina, era uma literatura profundamente rural… O Eça(!) O Eça, que é um escritor escandalosamente rural quando fala de Lisboa… É tão rural e tão snob - primário - , na minha opinião… que… põe anglicismos perfeitamente escusados… ‘’deram shake-hands’’ e coisas desse género, não é (?)… Aquilo é quase um repositório de exibicionismos dum provinciano… dum provinciano… que passou pela Inglaterra, que passou… por Cuba… e que entretanto lia o Flaubert (!)… De modo que… nós… eu… a minha geração, como lhe digo… reagiu muito a isso… Nós… portanto, eu… (…) O que me ficou dessa altura foi um profundo ódio ao provincianismo.
5. ‘’Um largo, aquilo a que verdadeiramente se chama largo, terra batida, tem de ser calcado por alguma coisa, pés humanos, trânsito, o que for, ao passo que este aqui, salvo nas horas da missa, é percorrido unicamente pelo espectro do enorme paredão de granito que se levanta nas traseiras da sacristia.’’ Ao contrário de outros autores, muito respeitados, que… desse tempo, do século passado e… e até do princípio deste século… nunca conseguiram ultrapassar esse leite que beberam na infância… essa linguagem rural… Isto coincidiu também… portanto, quando eu apareci, a minha geração que… a minha geração era por coincidência feita de pintores… de pintores… de poetas… só havia um prosador… o resto era tudo… e, e… e… e portanto nós, como reacção, tínhamos uma atitude que foi um pouco contra… foi bastante (!) contra o neo-realismo da… daquela fase… o romantismo neo-realista… portanto, era eu, era o Alexandre O’Neill, era o… o Cesariny… o Vespeira… Este grupo, a pouco e pouco foi-se separando… Eu nunca fui surrealista, por exemplo… Eu participei sempre de… ao princípio, muito… das manifestações surrealistas e isso, aliás, vem explicado num livro do Cesariny… mas nunca me comprometi com o surrealismo.
6. ‘’Diariamente, ano após ano, século após século, essa muralha, mal o sol se firma, envia a sua sombra para o terreiro, arrastando uma outra, a da igreja. Leva-a envolvida, viaja com ela pelo deserto de buracos e de pó, cobre o chão, arrefece-o, e ao meio-dia recolhe-se, expulsa pelo sol a pino. Mas a tarde é dela.’’ (Houve…) uma necessidade muito grande de… de permanente libertação… Descobrimos os espanhóis, por exemplo… Em vez de franceses, nós descobrimos os espanhóis… Inclusivamente alguns como por exemplo o O’Neill e o Cesariny serem homens de formação muito francesa (!) Mas… foram eles que descobriram em Portugal… descobriram, quer dizer… que divulgaram em Portugal… o Vicente Aleixandre… o Llorca, claro… Todos eles, aqueles escritores espanhóis que nós na altura líamos com uma grande devoção… líamos também para reagir ao mito francês… era um pouco também por isso. Ainda hoje, a literatura contemporânea francesa, por exemplo, aquela que… me aparece… não me deixa de tal modo surpreendido, de qualidade ou tudo o mais… Admiro é… outra coisa, admiro é… a cultura francesa, a sua organização… a cultura literária francesa (!)… como indústria (!)… é uma indústria perfeita. A mais perfeita, talvez, do mundo. Mas isso não chega, por exemplo, para eu dizer que aprendo alguma coisa, ou aprendo muito com o romance francês contemporâneo, por exemplo… Enquanto que… desde esse tempo, todos nós temos uma preocupação de saber o que há… para não fazer o que está feito.
2. ‘’Pois. Também isso. Inútil. Sem sentido. Porque raramente alguém o procura, apesar de estar onde está, à beira da estrada e em pleno coração da comunidade. Tal como um prado de cardos, mostra-se agressivo, só domável ao tempo; e se não pica, repele, servindo-se das covas, dos regos das chuvas ou da poeirada dos estios.’’ O que pode permanecer é sempre o desejo de descobrir e uma certa rebeldia em relação a si próprio, até. Quer dizer, o escritor, à medida que avança nos anos e no trabalho, o maior pânico que ele tem é desconfiar que já leu aquilo em qualquer lado dele… Dele. É pior. É pior do que desconfiar que provavelmente aquilo já foi tratado… Mas por ele, aí, é um sinal terrível, é uma angústia muito grande… Portanto, essa necessidade de renovação… que… que existe praticamente em tudo quanto é minimamente criativo, essa permanece.
4. O romance português chocou-me sempre muito e ainda, em alguns aspectos, me continua a chocar - por ser predominantemente escrito no discurso indirecto… Havia, por outro lado, uma preocupação de fugir à linguagem rural… Porque quando ela é rural e… está certa… Quando ela é rural e quer tratar de coisas citadinas, isso é um contra-senso terrível… Ninguém pode negar que, por exemplo, um génio, como foi o Camilo Castelo Branco… se alguém fez linguagem rural, era a dele. E daí os piores livros do Camilo Castelo Branco serem justamente aqueles em que ele se mete na cidade... Quando ele fala de Lisboa ou fala do Porto… aquilo começa a ter problemas, não é? Agora… aquele génio que era da escrita…tinha uma linguagem espantosa!
